O tempo e o conhecimento

Quinta, 4 de abril de 2024

O tempo e o conhecimento

O TEMPO E O CONHECIMENTO

Pablo Galvão Marano

 

            Após um belo anoitecer, em seguida a um deslumbrante pôr do sol de um dia de outono, preparei-me para escrever sobre contratos de adesão. Cheguei a cogitar abandonar essa jornada para secar o Palmeiras, que estrearia na Libertadores, mas adotei uma posição intermediária. Fui à minha biblioteca para, apenas, separar alguns livros para o estudo. Havia em mim alguma ansiedade para encontrar uma edição antiga, do início da década de 80 do século passado, do civilista Caio Mário da Silva Pereira. Fiquei com uma sincera curiosidade sobre o que ele escrevia sobre contratos de adesão, naquele tempo.

            É aquela velha história: quando uma janela se fecha, uma porta se abre. Não encontrei a obra do civilista que eu procurava, mas, no entanto, tropecei em um volume de Serpa Lopes[i], uma edição de 1957. Ainda sentado ao chão, de frente para uma pilha de livros, comecei a folhear a obra do autor. Rapidamente, encontrei o tema de meu estudo e, quando dei por mim, estava embarcando em um túnel do tempo, alcançando os debates daqueles dias sobre contratos de adesão. Foi como se aquelas palavras nas folhas daquele livro tivessem me transportado para o momento em que foi escrito. Consegui me sentir imerso naquele contexto e foi fascinante observar como as discussões daquele tempo, hoje, parecem desbotadas. Em alguns casos, tão desbotadas, que mal conseguimos as enxergar, com a distância trazida com o passar dos anos. Sequer nos damos conta que um dia houve controvérsia sobre o que entendemos como verdadeiro, atualmente[ii].

Encontrar uma obra desta destacada qualidade, datada de tantas décadas atrás, de autoria de um prestigiado civilista, foi uma oportunidade de refletir sobre a evolução do conhecimento e de como estamos sempre debruçando nos ombros dos grandes que vieram à nossa frente, para conseguirmos enxergar mais longe.[iii]

            No caso específico dos contratos de adesão, objeto de meu estudo, eu buscava saber como os civilistas abordavam o tema, antes do advento do Código de Defesa do Consumidor – CDC (de 1990) e do Código Civil - CC (de 2002). É que os contratos de adesão somente ganharam previsão expressa a partir do CDC e, na teoria geral dos contratos, receberam tutela apenas no Código Civil de 2002, sendo, antes destas inovações legislativas, tratados apenas pela doutrina e pela jurisprudência.

            Foi por isso que o encontro com a obra de Serpa Lopes, datada de 1957, foi um presente. Eu não somente encontrei o que buscava para meus estudos, como, por coincidência bastante inesperada por mim, percebi que conseguiria, a partir da abordagem de Serpa Lopes, reforçar a minha análise crítica sobre contratos de adesão.

            Serpa Lopes abordava em sua obra de 1957 como os contratos negociados pensados no Código Napoleônico já estavam distantes dos modelos de contratação de meados do século XX[iv]. E o civilista avançava, abordando o alargamento do uso dos contratos de adesão, já naquele tempo, destacando o incremento das estruturas empresariais e suas praxes contratuais[v]. Contudo, observe, Serpa Lopes destacava que a proeminência de seu uso era no setor público[vi], o que hoje não mais é verdadeiro, já que diversos segmentos do mercado, que naquele tempo eram explorados por entes públicos, foram migrando para a atividade privada, notadamente a partir das privatizações de atividades até então estatais. Além disso, o civilista indicava alguns segmentos do mercado como principais manejadores dos contratos de adesão[vii], realidade bastante diferente da atual, na qual estes mesmos agentes do mercado, como por exemplo, fornecedores de energia elétrica e telefonia, são apenas mais um entre tantos outros que se valem diuturnamente de contratos de adesão. Nas relações mercantis e interempresariais, talvez, o contrato de adesão tenha se avolumado tanto no tráfego jurídico atual que não se deve, sequer, considerá-lo como uma estrutura contratual excepcional, já que os modelos de adesão convivem mais e mais com os contratos negociados.

            O que pretendo abordar aqui não é a evolução dos contratos de adesão, propriamente. Esse tema será abordado em artigo próprio, no qual apresentarei propostas de revisão crítica da tutela dos contratos de adesão. Por ora, quero apenas refletir um pouco sobre esse encontro com Serpa Lopes e algumas lições que acredito ser interessante dividir com quem se interessou a chegar até essas linhas.

            Em primeiro lugar, compreendermos que, por mais brilhante que seja uma ideia, um pensamento, uma tese, uma simples conjectura, qualquer que seja a possibilidade que passe em nossa mente, ela deriva de conhecimentos prévios que acumulamos e dividimos com a nossa comunidade, para que, em constante evoluir, possamos avançar como sociedade.

            Além disso, pensar sobre como os contratos de adesão eram abordados há mais de 65 anos atrás me faz pensar sobre como é necessário estarmos abertos a novas ideias, a novos conhecimentos e a reconhecer novas práticas e valores renovados de tempos em tempos, possibilitando, assim, que nossas interpretações do mundo exterior possam avançar junto com a sociedade. Por exemplo, no campo do estudo jurídico, é importante estarmos sempre atentos aos avanços nos usos e no tráfego de institutos e instrumentos jurídicos pela sociedade, da mesma maneira que devemos ser atentos observadores das práticas sociais de nosso tempo, para que, na qualidade de juristas, possamos contribuir para interpretações de aspectos jurídicos de acordo com o progresso da sociedade.

            Não são apenas os contratos de adesão que ganharam novos usos e, com isso, atraíram novos problemas e demandas para a comunidade jurídica. A sociedade como um todo evolui, modificando suas formas de interagir com as coisas e com as pessoas e, nesse aspecto, cabe ao direito e a nós mesmo, enquanto membros da comunidade, encontrarmos respostas para as novas demandas que se apresentam, sem ficarmos exasperadamente apegados a interpretações pretéritas, que refletem as interpretações de mundo que também ficaram no passado.

            Isso me leva ao terceiro e último aprendizado, que se brinca nos anteriores, e que gostaria de dividir. O conhecimento, incluindo o científico, não é imutável. Tendemos a nos apegar ao conhecimento já adquirido – e quanto mais especialistas nos tornamos, mais intensificamos esse atributo –, o que muitas vezes nos impede de compreender o universo que nos circunda, as transformações que governam o nosso tempo. Novos debates, quando propostos inicialmente, tendem a ser ridicularizados, sobretudo quando se afastam demais do conhecimento imediatamente anterior. É como se, no presente, tendamos a esquecer que o conhecimento (científico ou de qualquer outra natureza) está constantemente evoluindo, de modo que as verdades de ontem se tornam apenas um passo intermediário para o conhecimento de hoje.

São, portanto, as novas proposições e as revisões críticas do conhecimento cristalizado que permitem que avancemos nas ciências e no conhecimento geral e, na mesma medida, acompanhemos a sociedade, oferecendo respostas que ela precisa encontrar. As análises críticas e as propostas de reflexão servem justamente para isso. Para que possamos debater as novas ideias e verificar quais delas melhor se encaixam para calibrar o conhecimento anterior às novas necessidades e à realidade contemporânea.

O conhecimento está sempre evoluindo. Para chegarmos às brilhantes teses dos civilistas atuais, para que eu estivesse pretendendo escrever uma proposta de revisão sobre a tutela dos contratos de adesão e para que o conhecimento siga avançando, precisamos passar por Serpa Lopes, por Caio Mário e por tantos outros ilustres professores. São nos ombros deles que nos debruçamos para enxergar mais longe. E é preciso que um dia alguém, no futuro, se debruce sobre os brilhantes de nosso tempo, para também avançarem. Espero que sempre rumo a uma sociedade mais justa e solidária.

 

Pablo Galvão Marano é Fundador do CADP. Mestre em Direito Civil pela PUC-RIO. Pós-graduado em Direito Civil Constitucional pela UERJ. Especialista em Direito Societário e Mercado de Capitais pela FGV. Especialista em Mediação Empresarial pelo Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA. Mediador Extrajudicial. Bacharel em direito pela UFRJ. Ex-Professor de Direito Civil da UFRJ. Advogado com atuação em contratos e direito empresarial. Sócio do Marano Advogados Associados.

 

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[i] LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil – Volume III (Fonte das Obrigações: contratos). 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1957.

[ii] A título exemplificativo, Serpa Lopes traz em sua obra três correntes doutrinárias da época que tratavam da natureza jurídica dos contratos de adesão, havendo uma delas que recusava a qualificação de contrato a essa estrutura negocial, a chamada teoria anticontratual.

[iii] Quem me trouxe essa lição foi o mais admirável professor que conheci e tive privilégio de ser seu aprendiz, Carlos Nelson Konder.

[iv] “Inimagináveis eram, ao nascer do Código Napoleão, formas de contrato com predeterminação das condições de suas prestações, ou com pré-redação unilateral de seu conteúdo”. LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil – Volume III (Fonte das Obrigações: contratos). 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1957, p. 223.

[v] Ibidem, p. 223.

[vi] Ibidem, p. 224.

[vii] Segundo o autor, os segmentos que mais se valiam de contratos de adesão, naquele tempo, eram (i) contratos de seguro; (ii) de transporte; (iii) os já mencionados fornecedores de energia, gás, etc.; e (iv) contratos com grandes companhias. Ibidem, p. 226.

Palavras-chave: Tempo Conhecimento Direito Evolução Sociedade