A ordem contratual contemporânea e os desafios de nosso tempo

Quarta, 3 de abril de 2024

A ordem contratual contemporânea e os desafios de nosso tempo

A ORDEM CONTRATUAL CONTEMPORÂNEA E OS DESAFIOS DE NOSSO TEMPO

Pablo Galvão Marano

 

            Houve um tempo em que comumente se dizia que o contrato é lei entre as partes. Esta concepção se cristalizou na sociedade ocidental e, mais relevante para esse texto, nos países de família romano-germânica, como é o caso do Brasil. A teoria contratual – que apoia toda a aplicação do direito em matéria de contratos – incialmente, foi concebida no ambiente de erguimento de uma classe burguesa, titular de poder econômico, mas privada das demais vertentes do poder, em sua concepção mais abrangente.

            Com a atração de novos feixes de poder, como o político, estava semeado o terreno em que a burguesia edificou a teoria contratual, a partir das Escolas de direito. Assim como toda teoria jurídica, a contratual daquela época (que chamaremos de oitocentista, considerando que sua difusão e ampla adoção se alocam no Século XIX) dedicou sua maior – ou seria exclusiva?- atenção às situações da vida que interessavam à classe que ostentava o poder naquele momento histórico. Do mesmo modo, categorias e institutos jurídicos, como a própria forma de aplicar o direito, partiram da perspectiva de tutela dos interesses daqueles que fabricavam as normas jurídicas – ou influenciavam sua fabricação. Grosso modo, quem paga o DJ escolhe a música.

            Por isso, a teoria contratual oitocentista foi estruturada a partir de valores e princípios, que se revelavam compatíveis com os interesses prevalecentes da classe burguesa daquele momento histórico, sobretudo com o objetivo de proteção da propriedade privada de um Estado autoritário, como era o caso dos reis absolutistas, que há pouco haviam sido suplantados pela classe burguesa emergente naquele tempo.

 

Teoria Contratual Clássica: a tutela dos contratos na Era Oitocentista

            Sob o prisma das partes contratantes, a teoria oitocentista partiu da inderrogável premissa que todos os indivíduos são iguais perante a lei, o que, juridicamente, se denomina como igualdade formal. Inexistia, pois, qualquer preocupação com eventuais contrastes nas qualidades e atributos dos contratantes, supondo-se que ostentaria poderes negociais equivalentes.

Quanto aos efeitos que produziria o contrato, a teoria contratual clássica assumiu como ponto de partida a intangibilidade como regra, de maneira que o contrato restaria protegido da intervenção desautorizada de terceiros, seja o Estado ou outros particulares. Essa perspectiva parece ter fertilizado o imaginário da sociedade, fazendo nascer em nossa mente uma imagem de invólucro em torno do contrato e de suas partes, somente havendo intervenção no quanto pactuado nas estritas hipóteses legais. E os casos em que a lei propunha a intervenção estatal, a rigor, estavam adstritos à falhas na manifestação de vontade ou a problemas na estrutura do próprio contrato. Além disso, a teoria contratual oitocentista compreendia as regras do contrato como mandatórias para aqueles que a ele se vincularam, a partir de sua livre vontade, o que parece mesmo ter propiciado a concepção de contrato como lei entre as partes.

 

A vontade da parte contratante na teoria contratual clássica

            As premissas acima, que fundam a teoria contratual oitocentista, se fortalecem a partir de um pilar central, o qual oferece o imperioso apoio e sustentabilidade àquelas abordadas linhas atrás, a vontade da parte. A teoria contratual, portanto, foi inaugurada com uma preocupação nuclear: se todos são iguais perante a lei, deve o direito contratual se preocupar com a manifestação de vontade do indivíduo de contratar, de modo que, emanada a vontade de se vincular ao contrato, ele passaria a funcionar como uma lei mandatória para os que contrataram.

Nesse contexto, o direito precisava se certificar que essa manifestação de vontade era livre. Deste modo, o direito contratual se ocupou de estruturar regras rígidas para filtrar a manifestação de vontade, com o objetivo de verificar se ela era livre e na forma legalmente admitida. Uma das preocupações centrais do direito contratual, portanto, era criar uma estrutura capaz de permitir a avaliação da vontade manifestada era ou não livre. Situações qualificadas como de perigo ou necessidade, permitiam – como ainda permitem - que se afaste a vinculação do contrato (o que se atrela às hipóteses de invalidade contratual). O direito analisa, então, a forma em que manifestada a vontade e verifica se está ou não de acordo com as regras jurídicas.

            Além disso, o direito também impôs algumas regras em relação à estrutura do contrato, as quais assumem um papel de peças que permitem a aplicação da teoria contratual e, mais propriamente, o direito contratual oitocentista. Com efeito, o objeto teria que ser lícito, não contrário à lei; a parte contratante deve ser capaz juridicamente, elemento que se imbrica na própria noção de proteção da vontade livre. Por fim, o contrato deve observar a forma determinada no contrato, ou quando a lei sobre isso não tratar, que não seja contrária à ordem jurídica.

            Pois bem. Como inegáveis avanços e contratempos, a teoria contratual foi conhecendo novos desafios, conforme caminhava e aumentava a sociedade. A nova dinâmica das relações sociais – incluindo as mercantis – trouxe diversos problemas que aguardavam respostas jurídicas. E a teoria contratual revelou-se impossibilitada de, na roupagem daquele tempo, alcançar soluções para os problemas de uma nova Era que se descortinava, a Era da revolução tecnológica e da sociedade massificada.

 

A sociedade contemporânea e o direito dos contratos

            Mudanças sociais e muitas outras ocorridas no direito privado, a partir do pós-Segunda Guerra Mundial e, mais precisamente no Brasil, a redemocratização do país e promulgação da Constituição de 1988, impuseram uma nova roupagem na ordem contratual. O tecido da nova forma de aplicar o direito contratual foi tomado de algumas Escolas jurídicas, que, paulatinamente, começaram a buscar novos parâmetros e estruturas para alcançar respostas aos novos problemas sociais, que já não correspondiam aos daquela sociedade oitocentista. As teorias e variadas Escolas foram oferecendo contribuições que resultaram, após um constante e progressivo evoluir, no que se pode chamar de nova ordem contratual, ou melhor, a ordem contratual contemporânea.

            Em relação às partes contratantes, os exemplos da vida cotidiana revelaram a absoluta insuficiência de uma tutela jurídica que assumisse todos como iguais (igualdade formal), se, na prática contratual, as assimetrias geravam contratos abusivos (não parece ser acaso que as pessoas sem formação jurídica conheçam tão bem a expressão “leonino”, seja para adjetivar um contrato ou uma cláusula). O reconhecimento da igualdade material – ou substancial – como valor da ordem jurídica permitiu que o direito dedicasse olhar mais sensível a vulneráveis (movimento que se origina na Constituição de 1988 e irradia seus efeitos, na qualidade de navio condutor do Direito brasileiro, para todas as demais normas jurídicas) permitiu, por exemplo, em matéria de direito contratual, o surgimento do direito do consumidor, cujo grupo de normas visa à proteção daqueles que ostentam debilidade negocial frente a contraparte (como, classicamente, se pode observar nas relações entre fornecedores de produtos e serviços e consumidores). Logo depois, essa mesma perspectiva escorou a roupagem trazida para os contratos de adesão no Código Civil de 2002. Restava, portanto, consagrada a noção de igualdade substancial, de modo que o direito passa a oferecer proteção ao contratante fragilizado em seus poderes negociais, não para substituir a vontade do contratante, mas para arrefecer ou frear abusos do mais fortalecido na atividade contratual.

            Nessa mesma trilha, a revisão judicial dos contratos passou a ser mais incisiva, sobretudo nos contratos de consumo ou naqueles em que há acentuada assimetria entre as partes contratantes. Esta nova teoria contratual inclui um novo elemento para avaliação da validade dos contratos: o merecimento de tutela. Sob tal perspectiva, aos contratos não basta que observem a estrutura legalmente prevista e que a vontade manifestada pelas partes seja válida (a propósito, outra mudança que merece menção rápida: agora, a vontade não precisa apenas ser livre; tem que ser também esclarecida, ou seja, informada). É preciso, igualmente, que o conteúdo do contrato esteja em harmonia com os valores e princípios que regem a ordem jurídica brasileira. O merecimento de tutela entra em cena, nessa nova roupagem da aplicação do direito contratual, para avaliar se o conteúdo do contrato está em sintonia com os valores fundantes da República do Brasil e, também, com os princípios que regem o direito dos contratos, como é o caso dos famosos boa-fé objetiva e função social, e dos menos propalados, como é o caso do equilíbrio contratual.

 

Massificação contratual na sociedade tecnológica

            Inicialmente, essa nova ordem contratual foi criticada por não oferecer soluções previamente conhecidas, já que princípios e cláusulas gerais são normas abertas, que necessitam de um caso concreto para que tenham seus exatos efeitos conhecidos. Haveria, pois, insegurança jurídica, segundo os críticos de tal abordagem. Porém, tais críticas parecem não ter se sustentado ao fim, pois o que restava mais e mais evidenciada era a inadequação da teoria contratual oitocentista para lidar com a sociedade massificada do século XX e, em especial, a partir da virada para o século XXI.

            Embora a nova teoria contratual tenha sido edificada paulatinamente, a partir do amadurecimento e debate – que costuma nascer nos círculos acadêmicos até transbordarem para os tribunais e se tornarem, ao fim, precedentes e jurisprudência – sobre segurança jurídica, parece que o trajetória da nova roupagem do direito contratual permitiu, ao menos, que a ordem jurídica enfrentasse problemas de nosso tempo, vivenciados no contexto contemporâneo, sejam decorrentes do avanço tecnológico ou do olímpico desequilíbrio na distribuição de recursos, em uma sociedade massificada, em que as contratações e relações jurídicas se tornam mais complexas, tanto quantitativamente como qualitativamente. A teoria contratual contemporânea, ainda que se estruture sobre muitas normas abertas e com caráter principiológico proeminente, oferece premissas e vetores que são facilmente conhecidos e sistematicamente estruturados para fins de transmissão do conhecimento e de apreensão geral.

            Parece apontar, a título exemplificativo nesse sentido, o estudo e aplicação do princípio da boa-fé objetiva, em sua evolução doutrinária e jurisprudencial. Em que pese as contramarchas ultrapassadas no processo de edificação de uma nova teoria, as normas que instrumentalizaram no direito o princípio da boa-fé objetiva, ganharam espaço no cenário jurídico, a partir de amplo debate sobre seus contornos, efeitos, etc. Ao fim, parece haver razoável consenso sobre sua tutela, o que indica a possibilidade de que normas abertas e teorias de perfil principiológico possam oferecer segurança jurídica.

 

Novos desafios da teoria contratual contemporânea

            A sociedade segue sua marcha e, independentemente do ineditismo do processo de revolução social que estamos vivenciando nos últimos anos, a chamada revolução tecnológica e a cada vez mais intensa massificação da sociedade, é inegável que desafios agigantados se apresentam. É possível sentir aquela sensação injusta de mal resolvi um problema e lá estão novos outros. Não houve tempo de se harmonizar os contornos da teoria contratual contemporânea – ainda há divergências acentuadas entre algumas Escolas, aspecto que parece indicar menos um contraste de entendimentos jurídicos e mais ideologias que têm encontrado dificuldades de alcançar um ponto de consenso – e novas situações já clamam por respostas do Direito.

          Neste espaço, publicarei uma série de textos que tratarão de desafios do direito civil e, mais especialmente, do direito contratual, que já estão demandando respostas jurídicas. Não se trata de reflexões especulativas sobre desenvolvimentos sociais e tecnológicos que possam exigir respostas jurídicas no futuro. Temas como os contratos de adesão nos dias atuais (será que ainda assumem o mesmo papel que tinham até os anos 90 e início dos anos 2000?); como uso de ferramentas tecnológicas em contratos, como é o caso dos smart contracts; como os desequilíbrios de contratos interempresariais, ou seja, que não são de consumo; como o princípio do equilíbrio contratual, afinal um debate se ele existe ou não; os limites da autonomia negocial em contratos assimétricos; as cláusulas morais. Todos esses – e muitos outros – são temas que nascem, ou ganham relevância, somente em um contexto mais recente e que, ainda assim, demandam por respostas do direito.

            Serão abordados, portanto, nos próximos textos assuntos que já clamam por um olhar mais sensível, hoje, agora. Não são problemas ou situações que poderão vir a existir. Elas já existem e gritam por respostas. Neste espaço, ao menos proporemos o debate.

            Sejam bem-vindos e bem-vindas.

 

Pablo Galvão Marano é Fundador do CADP. Sócio do Marano Advogados Associados. Mestre em Direito Civil pela PUC-RIO. Pós-graduado em Direito Civil Constitucional pela UERJ. Especialista em Direito Societário e Mercado de Capitais pela FGV. Especialista em Mediação Empresarial pelo Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA. Mediador Extrajudicial. Bacharel em direito pela UFRJ. Ex-Professor de Direito Civil da UFRJ. Advogado com atuação em contratos e direito empresarial.

Palavras-chave: Teoria Contratual Contratos Tecnologia direito